Fernando: Sair da Gaiola
Certo dia, na cidade do conhecimento, nasceu um menino de olhos grandes e ávidos de conhecimento. Reside, desde então, numa pequena e verdejante aldeia de Arganil. Conheceu, desde tenra idade, o que é sentir-se agrilhoado e, durante muito tempo, achou que o melhor era continuar pequenino, tímido e não se fazer notar. As memórias de infância abatem-se sobre si como uma bátega de água: a casa era farta em gente, mas, em igual proporção, em violência verbal e física.
O pai, homem de pequena estatura, mas grande em maldade e doença, levou a mãe por duas vezes às portas da morte e marcou-a com uma maleita psiquiátrica para a vida. A irmã, fruto de uma descompensação psicótica, foi internada numa instituição. O irmão mais velho foi entregue aos 5 anos aos cuidados de um tio em Lisboa e o outro irmão viu-se obrigado a sair de casa no início da adolescência e a vaguear de casa em casa.
Fernando remetia-se ao silêncio, escapando por entre as gotas da chuva; não podia opinar ou fazer o que queria. Sofria por não poder defender a irmã e a mãe do pai e esse sentimento ainda perscruta a alma. A mãe achava que não lhe podia ensinar nada, que teria de aprender sozinho, sobrando-lhe em amor. Na escola sofreu bullying, o que aumentou a sua timidez e sentimentos de inferioridade. As nuvens negras de “não sou capaz, não consigo aprender” ensombraram-no ano após ano.
Para sobreviver à realidade, o jovem refugiava-se num universo virtual no computador e a aprofundar conhecimentos sobre cultura pop japonesa, em que florescia a desenhar mangás. Aí, podia ser o verdadeiro Fernando. Os dias luminosos e quentes aconteciam quando ia a visitas de estudo e participava em atividades desportivas e ao visitar um tio que tinha um papagaio com bonita plumagem e que emitia belas melodias.
O jovem também se sentia preso numa gaiola e invejava as cores e voz daquela ave canora, ansiando poder libertar-se. Privou com pessoas-luz no caminho da Fé. No Secundário frequentou os cursos de Mecatrónica e Turismo, porém, não terminou a escolaridade por agudização do estado de saúde (refere colapsos de memória, vazio mental, dificuldade de reter aprendizagens).
Com a entrada na APPACDM começou a despertar; é um expert na informática, gosta de estar ocupado em atividades de separação de resíduos, desafia-se no Cross Fit e gosta de karaoke. Fernando cresce e brilha quando é desafiado para trabalhar alguns temas que lhe são caros, como os Direitos. Aos poucos vai-se libertando da gaiola em que se aprisiona e as bússolas do Amor, da Coragem e da Fé dão-lhe as asas para voar e entoar cada vez mais a voz. Tem medo do desconhecido, da rejeição e de ficar sozinho; mas ousa olhar para as estrelas e almeja ter mais autonomia e privacidade, reconhecer o seu valor, reencontrar-se com o Outro e amar a família.
“Imagens e Histórias: eu mudo, tu mudas e juntos mudamos o mundo” é um projeto da APPACDM de Coimbra. O seu objetivo é contribuir para mudar a representação social da pessoa com deficiência na sociedade, através de histórias e retratos dos seus utentes. O projeto deu início, no dia 6 de outubro de 2021, à sua divulgação. Semanalmente, às quartas-feiras, as histórias e retratos vão ser publicados no Diário de Coimbra. Saiba mais aqui.
Fotografia de João Azevedo.