Luís: Respirar debaixo de água
O mundo viu nascer Luís há 44 anos, mas, por mais cores que existissem, ele não as conseguia ver. Luís nasceu imerso no oceano e por lá aprendeu a respirar. Apenas passados alguns anos, quando deu à costa, foi capaz de se levantar, começar a andar e a falar. Mas o esforço de respirar debaixo de água foi demasiado e nem sempre o corpo conseguiu acompanhar a ânsia.
Desde cedo, foi a vida a decidir por Luís e, ainda não satisfeita, decidiu desligar as luzes dos faróis que deviam orientá-lo no seu caminho.
Luís teria muito a dizer acerca das suas noites de luzes apagadas, de quando os pés não tocavam no chão. De quando perdia o espaço para respirar e fugia para o seu próprio mundo, tentando isolar o gelo que lhe queimava o peito. De quando a rua se tornou anestesia e o cinzeiro o seu melhor amigo. Como quem rouba as chaves de casa e se tranca do lado de fora.
Luís teve de lutar para conciliar o que se tornou, com a criança escondida e ferida por dentro. Aprendeu que a única coisa certa em que podia confiar, é que não pode confiar em coisa alguma. Afinal, que razões tinha para acreditar noutra coisa?
Mas, por mais que tentasse, a vida não o conseguiu derrotar. Das várias formas de alegria, não esquece a APPACDM de Coimbra e as mãos amigas que o apoiaram. Com a ajuda dessas mãos, Luís levantou-se e tomou a sua posição. Queria ser motorista de camiões, para conhecer o mundo. Durante 12 anos, trabalhou na distribuição de gás e o mundo ficou mais perto. Tirar a carta de mota foi um novo sonho e foi logo à primeira que conseguiu. Hoje a sua mota tornou-se a sua menina, é ela que o leva a voar distâncias de liberdade.
Sabendo que nem tudo o que brilha é ouro, mas por vezes a ânsia de ter amigos é mais forte e não conseguimos distinguir, não sabemos dizer não. Luís mergulhou num mar escuro e negro, sem farol, sem terra à vista. Mas neste mundo há marinheiros bons que nos atiram remos e nos ajudam a perceber que o mar pode ter margem. Voltar à tona da água não é fácil pois é preciso recomeçar e o Luís recomeçou.
Assim, o menino que aprendeu a respirar debaixo de água, encontrou no desporto, o seu mar. E nem mil piratas conseguiram roubar-lhe o ouro e o valor, que inúmeras vezes alcançou. Foi uma batalha difícil, mas a vitória foi ainda mais doce.
Como um verdadeiro alpinista, o Luís atingiu o cume da montanha, mas sabe que não podia manter-se lá. Mas, na verdade, também se habituou a não precisar disso para seguir o seu caminho. Precisa apenas de uma brisa de verão, umas canções de liberdade, uma melhor maneira de viver. Apenas quer o seu espaço, onde não seja preciso disfarçar ou fingir o seu jeito. Onde não o interpretem ou entendam mal. Onde não haja nenhum castelo para defender. Luís sabe que a vida é o que faz dela e que as coisas estão ao seu alcance. Afinal, respirar debaixo de água não é para todos.
“Imagens e Histórias: eu mudo, tu mudas e juntos mudamos o mundo” é um projeto da APPACDM de Coimbra. O seu objetivo é contribuir para mudar a representação social da pessoa com deficiência na sociedade, através de histórias e retratos dos seus utentes. Cofinanciado pelo Programa de Financiamento a Projectos pelo INR, I.P., o projeto deu início, no dia 6 de outubro, à sua divulgação. Semanalmente, às quartas-feiras, as histórias e retratos vão ser publicados no Diário de Coimbra. Saiba mais aqui.
Fotografia de João Azevedo.