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Telma Mónica: aMAR

A cada dia que passava aquele mar frio subia teimosamente um pouco. Não se vê, porém, a olho nu, o mesmo que para o efeito contribuía alimentado pela tristeza dos pensamentos que flutuavam ao seu redor. O Cardume era grande o bastante, pois é assim que se sente bem. Todos eles sabiam saltar fora de água e faziam-no com grande perícia. Ela, porém, havia saltado uma única vez na vida.  

Esse dia chegou cedo e luminoso, tal e qual como a nossa Telma gosta. Decidida, nadou o mais rápido que pôde e já perto do embrulho da vida sentiu inesperadamente o seu corpo comprimido e atirado ao ar por aquela gaivota. Era, porém, um bico demasiado frágil para tal missão e Telma ficou desde cedo entregue à sua sorte, numa assustadora vastidão de oceano onde eram escassas as ondas de amor. Essa seria a energia motriz para tornar o mundo um sítio seguro no qual acreditaria de forma consistente que era suficientemente boa para ser amada e aprender que era capaz de se transcender no outro. Mas essa confiança não se desenvolveu e o mar ficava cada vez mais frio, repleto da angústia de não ser, não ser suficiente, não confiar e sobretudo de não poder amar.   

Muitas eram as vezes em que se sentia infeliz por não conseguir voltar a saltar fora de água e passava, por isso, os seus dias a pedir desesperadamente que a ajudassem. Acabara por ser missão do Cardume, pelo que todos aqueles com que se cruzava na APPACDM de Coimbra acediam afincadamente aos seus pedidos. Mas o limbo parecia feito de um betão construído para resistir às ondas mais violentas do oceano e as fortes correntes do seu passado prendiam-na na incerteza do abandono pelos que tanto ama(va).   

Dias havia que não se lembrava do salto, outros até que já nem o queria dar. Aquele mar frio com tanto para dar e receber não parava de subir, colecionando lágrima atrás de lágrima. 

Mas, aproveitando a maré da vontade de uma preia-mar qualquer, aquele cardume uniu-se verdadeiramente para o tão ambicionado salto. Ficaria combinado, com compromisso e grande entusiasmo, a concretização do plano. 

Na verdade, não conseguiu apenas um, têm sido vários os saltos que Telma tem dado ao longo da sua vida! Muitos são literais, pois manda-os para a piscina onde adora passar longas horas a nadar. Outros dá-os com os pés bem assentes no chão e de sorriso na cara. Encontram-se no carinho que deposita em cada uma das crianças da Instituição onde é voluntária, no empenho a traçar as linhas das almofadas que (a) preenche o seu trabalho ou até no simples cuidado, atenção e preocupação diária com todos aqueles que a rodeiam.  

Há ainda alguns que não se vêm, sentem-se! É a ajudar quem a rodeia e lhe dá amor que a Telma consegue saltar facilmente para outro plano, surpreendendo em cada gesto pela sua empenhada capacidade de aMAR. 

“Imagens e Histórias: eu mudo, tu mudas e juntos mudamos o mundo” é um projeto da APPACDM de Coimbra. O seu objetivo é contribuir para mudar a representação social da pessoa com deficiência na sociedade, através de histórias e retratos dos seus utentes. O projeto deu início, no dia 6 de outubro de 2021, à sua divulgação. Semanalmente, às quartas-feiras, as histórias e retratos vão ser publicados no Diário de Coimbra. Saiba mais aqui.

Fotografia de João Azevedo.

Telma Mónica: aMAR