Avançar para conteúdo principal

Vanessa: Matar a sede

O que é autenticidade? – questiona Vanessa, pouco antes de dizer que é um “livro aberto”. Como quem mostra o jogo todo, é isso mesmo que ela é: autêntica. “Quem gosta, gosta. Quem não gosta põe para o lado”. Sem se preocupar muito com o que possa colher, não concebe outra forma de semear. 

Vanessa tem 32 anos e ainda espera viver um dia que nunca acabe. Tinha apenas um mês de idade quando lhe foi diagnostica epilepsia, o que lhe ditou um caminho conturbado de dores de cabeça, descontrole e quedas inesperadas. De dias transformados em noites, de descanso adiado. 

Fez o seu percurso escolar até ao 9º ano e ingressou na Formação Profissional, mas as lembranças desse tempo estão ligadas às cicatrizes que deixaram. Cicatrizes de dificuldades e insucessos. Ainda não estava pronta para seguir esse rumo pelos seus próprios pés. Mas houve algo que Vanessa encontrou na APPACDM: um lugar seguro, onde se sente acolhida e reconhecida, onde sente que pertence. Encontrou aquilo que lhe é mais precioso: os seus amigos.  

Nas suas memórias mais alegres, os dias tornaram-se mais longos e o sol demorava a pôr-se. Eram dias de piscina onde nadava, havia diversão, conversas sem fim e gelados com os amigos. Onde se sentia livre. Por mais funda que fosse a piscina, descansava-a saber que havia sempre um nadador-salvador pronto a socorrê-la. Alguém que olhasse por si e a amparasse, não fosse o corpo pregar-lhe uma partida. 

Mas a sorte ficou contra ela e a noite mais longa caiu quando lhe faltaram os olhos que a acompanhavam. Quando um dia chegou a casa e as coisas não estavam como era suposto. Os alarmes tocaram e Vanessa viu-se amarrada. Uma sombra passou a cobrir os dias de sol e tornou-se mais difícil lembrar das alegrias do amor de criança. 

Mas Vanessa continua firme apesar das cicatrizes, mantendo a confiança e a cabeça erguida. Tem o sangue ardente e o coração na boca, exigindo que os outros cumpram o seu papel. Tentar agradar a todos, definitivamente, não é para ela. E não é qualquer pessoa que é digna da sua lista de convidados. Como a lua, tem as suas fases: fases de se esconder, fases de aparecer. 

Nesta altura do campeonato, Vanessa conta com a família da APPACDM para encontrar soluções que lhe permitam sentir-se independente e livre, para se soltar das amarras e sentir-se completa. Anseia pelo seu emprego e pela sua independência, como um gato que anseia matar a sede. Até lá, encontrou na área de Serviço Gerais um modo de secar as lágrimas, de se responsabilizar e começar a caminhar sem apoio (e sem medo), de limpar e arrumar a confusão, de se reconciliar consigo própria. 

Qual gato estendido ao sol à espera, aguarda uma oportunidade de matar esta sede de fazer a vida valer a pena. Precisando dos dias de sol, tanto ou mais quanto outros precisam, Vanessa espera uma oportunidade que dê asas à sua determinação. Em fazer a vida valer a pena. 

“Imagens e Histórias: eu mudo, tu mudas e juntos mudamos o mundo” é um projeto da APPACDM de Coimbra. O seu objetivo é contribuir para mudar a representação social da pessoa com deficiência na sociedade, através de histórias e retratos dos seus utentes. Cofinanciado pelo Programa de Financiamento a Projectos pelo INR, I.P., o projeto deu início, no dia 6 de outubro, à sua divulgação. Semanalmente, às quartas-feiras, as histórias e retratos vão ser publicados no Diário de Coimbra. Saiba mais aqui.

Fotografia de João Azevedo.

Vanessa: Matar a sede