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Graça: Sozinha não se é ninguém

Graça, Maria da Graça, vivia numa pequena aldeia no concelho de Montemor-o-Velho, com três irmãos e pais – uma casa cheia. Guarda boas memórias da infância: a união, o afeto, as rezas em conjunto, à noite perto da braseira, mas também as preocupações e conselhos da mãe. Recorda momentos felizes vividos nas excursões com as vizinhas. A azáfama de preparar o passeio, a expectativa da partida, o sabor dos petiscos que partilhavam ao almoço e lanche. 

Porém, também é nas memórias de infância que guarda algumas mágoas. Essas, vêm da escola. Os professores batiam e davam reguadas aos alunos que não aprendessem. Graça sentia dificuldades de aprendizagem e não havia integração. Conta que, certo dia, foi fechada na casa de banho, sem piedade, onde gritou e só saiu depois de a sua mãe a ir buscar. O tempo já não deixa saber quem o fez, nem o motivo de tal castigo, mas ainda hoje tem medo de estar sozinha. Queria tanto aprender e não conseguir deixava-a triste. 

Entretanto a escola acabou. A juventude passou. O gosto que sempre teve por ajudar e cuidar dos outros levou a que fosse trabalhar para um Lar de idosos. Ajudava naquilo que podia e sabia. Dava-lhes a comida, fazia as camas, limpava. Com a ajuda da irmã mais nova, apanhava o autocarro à segunda-feira de manhã e voltava, também com ela, na sexta-feira ao fim do dia. Sentia-se útil a ajudar as pessoas mais velhas. Ao fim de semana também ajudava em casa, com os animais e as terras. Mas o domingo era dia de descanso e ia à missa com a mãe e irmã. Sempre bem arranjada, sentia-se jeitosa. 

Entretanto os pais faltam, um de cada vez. Com eles, foi também a liberdade. Graça passa a sentir que tudo é impossível. “Os meus pais já morreram, nada é a mesma coisa. Já não posso andar por aí a rir. A vida não é nada fácil”, explica, respirando fundo. 

Contudo, continua a acreditar que com calma e levando um dia de cada vez tudo se consegue. Os irmãos precisam dela, e Graça deles. Com ajuda tem conseguido manter-se na sua casa, no seu cantinho. O seu maior desejo é ter carinho, amor. “É preciso amigas como aqui na APPACDM, que é uma casa cheia”, conta com alegria. Fala-se com esta e com aquela. Dá-se apoio. Tem a sua rotina de se arranjar, de vestir e ir na carrinha para o Centro. “Sinto-me feliz”.   

Graça tem hoje no rosto as marcas do tempo e da dureza da vida. Mas uma marrafa de cabelo rebelde caída na testa continua a evocar a irreverência. As mãos continuam doces, são mãos de cuidar. Os olhos escuros e redondos deixam antever a curiosidade de quem nunca desistiu de aprender. No futuro sonha ser uma velhinha arrebitada, fazer ainda muitas excursões, continuar a fazer o almoço e mandar lá em casa. Mas nunca sozinha. “O que há de ser da gente sozinhos? Uma pessoa sozinha não é ninguém!” 

“Imagens e Histórias: eu mudo, tu mudas e juntos mudamos o mundo” é um projeto da APPACDM de Coimbra. O seu objetivo é contribuir para mudar a representação social da pessoa com deficiência na sociedade, através de histórias e retratos dos seus utentes. Cofinanciado pelo Programa de Financiamento a Projectos pelo INR, I.P., o projeto deu ontem, dia 6 de outubro, início à sua divulgação. Semanalmente, às quartas-feiras, as histórias e retratos vão ser publicados no Diário de Coimbra. Saiba mais aqui.

Fotografia de João Azevedo.

Graça: Sozinha não se é ninguém